Brasil: Toda terra é indígena, e toda propriedade é colonial

Três homens indígenas adornados com grandes cocares redondos de penas em suas cabeças, segurando seus maracás Protesto indígena no Acampamento Terra Livre em Brasília 2024 (© CC BY 2.0 DEED, Jefferson Rudy/Agencia Senado) Oito mulheres indígenas, lado a lado, com enfeites de plumas e penas em suas cabeças, brincos de penas amarelas e vermelhas, e pintura vermelha e preta no rosto Protesto indígena no Acampamento Terra Livre em Brasília 2024 (© CC BY 2.0 DEED, Jefferson Rudy/Agencia Senado) Indígenas protestam com vários cartazes Protesto indígena no Acampamento Terra Livre em Brasília 2024 (© CC BY 2.0 DEED, Jefferson Rudy/Agencia Senado)

29 de abr. de 2024

No século XVI, o português Pero Vaz de Caminha se apossou das terras dos povos indígenas - hoje chamada de Brasil - para a coroa portuguesa. Desde então, os indígenas têm lutado contra as consequências desse roubo: a violência e a morte. Todos os anos, em abril, desde 2004, eles realizam o "Acampamento Terra Livre" na capital federal para exigir o reconhecimento de seus territórios.

Em 1 de maio de 1500, o escrivão Pero Vaz de Caminha enviou ao rei de Portugal uma longa carta onde relatava "o achamento desta vossa terra nova". Na carta, Caminha descrevia e atribuía à coroa portuguesa as terras onde ele outros 1500 homens, entre os quais o comandante da esquadra, Pedro Álvares Cabral, haviam atracado em 13 embarcações oito dias antes, em 22 de abril.

A "terra nova", na verdade, era conhecida por Pindorama, e já era habitada desde tempos imemoriais por quase três milhões de originários de diferentes povos. Portanto, não houve achamento, mas invasão de Pindorama pela coroa portuguesa que, mais tarde, renomearia o território com o nome de Brasil.

A carta escrita por Caminha relatando o "achamento" é o primeiro documento de falsificação de posse das terras ancestrais dos povos originários em Pindorama. É a partir deste documento que todos os demais falsos títulos de propriedade foram produzidos e legalizados pela lógica da burocracia branca e europeia dos papéis, e legitimados pela narrativa da conquista, imposta aos indígenas e, depois, aos africanos escravizados, pela brutalidade dos invasores ao longo dos séculos.

Desde 1500 até hoje, os povos originários que resistiram ao genocídio e ao saque sistemático praticado por portugueses, espanhóis, franceses e holandeses lutam pelo direito de permanecerem em suas terras ancestrais ou de retornar a elas, nos casos em que foram expulsos e obrigados a se refugiar em territórios que não eram os seus, inclusive nas periferias dos grandes centros urbanos.

O artigo 231 da Constituição Brasileira de 1988 reconhece aos indígenas "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam", ou seja, seus direitos são anteriores à criação do Estado e à própria noção de "direito". No entanto, pela lógica da burocracia branca, não basta que os povos indígenas sejam, na origem, os donos de suas terras ancestrais para estarem seguros nelas. O mesmo artigo 231 diz que compete ao Estado demarcar essas terras, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens.

Mas isso não acontece.

Menos de 1% da população

O processo de demarcação de terras indígenas no Brasil é burocrático e lento, podendo durar décadas sem que nenhum passo seja dado em direção à finalização. Segundo dados do governo federal, o Brasil tem hoje 736 Terras Indígenas registradas. Desse total, 477 estão regularizadas; outras 259 ainda estão em diferentes fases do demorado processo de regularização. Isso sem falar dos processos de demarcação que ainda não foram abertos e que, por isso, não estão contabilizados nesses dados.

 

As consequências do roubo e saque das terras indígenas desde o século 16 é patente no números de membros desses povos que conseguiram resistir à matança. Segundo dados do Censo de 2022, o Brasil tem hoje 1,7 milhão de pessoas auto declaradas indígenas, organizadas em 305 povos. Esse número representa apenas 0,83% da população brasileira, que tem mais de 215 milhões de pessoas.

Lentidão planejada

A lentidão e ineficiência do processo de demarcação das terras indígenas não é fortuita. Ela responde aos interesses dos descendentes dos primeiros invasores - hoje políticos, juízes e membros da elite empresarial - que querem continuar tendo domínio e posse sobre as terras que seus antepassados invadiram, roubaram e lhes deixaram como legado por meio de documentos falsos.

Entre 2019 e 2021, durante o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão federal responsável pelas demarcações, foi presidida pelo delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, que não identificou, declarou ou homologou nenhuma terra indígena, e deliberadamente retardou processos de demarcação que já estavam em andamento.

Enquanto não têm suas terras demarcadas, os povos indígenas em território brasileiro continuam sendo violentados, expulsos e exterminados de diferentes formas, inclusive por milícias rurais financiadas por políticos, que usam da mesma brutalidade praticada pelos primeiros invasores, antepassados seus.

Acampamento Terra Livre

Apesar de todas as forças contrárias - que nunca deixaram de existir -, a luta pela terra ancestral dos povos originários tem ganhado cada vez mais corpo nos dias atuais, tanto no campo como na cidade.

Sua expressão pública mais incisiva acontece durante o Abril Indígena, mês de protestos, celebrações e memórias com o protagonismo de indígenas que ocupam as ruas, praças e as notícias na imprensa brasileira.

O Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização nacional de milhares de indígenas de diferentes povos, é um dos eventos mais importantes do mês. Completando 20 anos em 2024, o ATL é realizado ao longo de uma semana em Brasília, capital do país e sede do governo federal e do poder legislativo.

 

Vindos em caravanas de diversas partes do Brasil, representantes de centenas de povos originários tomam as ruas e espaços públicos dos poderes federais para reivindicar seus direitos, socializar lutas e estratégias, celebrar conquistas e suas diversas culturas, e dizer aos governantes que os direitos originários são inegociáveis. 

Ano após ano, a demanda primeira dos originários que se reúnem no ATL é por terra e território, onde se assenta o presente, o passado e também o futuro. "Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui", diz o lema desta vigésima edição do acampamento.

Nessa mesma perspectiva histórica, também é possível dizer que entre as invasões de 1500 e hoje, não há ruptura, mas continuidade. E se na origem toda terra é indígena, logo toda propriedade é fruto das invasões coloniais.

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